segunda-feira, 30 de abril de 2007

Amar... (eternamente)



Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
e o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 29 de abril de 2007

Não queimava... sorria...



"Como nos enganamos fugindo ao amor!
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar sua espada coruscante, seu
formidável
poder de penetrar o sangue e nele imprimir
uma orquídea de fogo e lágrimas.
Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
em doçura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.
Mal entendi, tanto que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
que trazias para mim e que teus dedos confirmavam
ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro, o Outro que eu me supunha, o
Outro que te imaginava quando - por esperteza do amor - senti que éramos um
só."

Carlos Drummond de Andrade

O amar vem d'alma...


Não te amo, quero-te: o amar vem d'alma.
E eu n'alma --- tenho a calma,
A calma --- do jazigo.
Ai! não te amo, não.

Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida --- nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,
De mau feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.


Almeida Garrett, Folhas Caídas(1853)

sábado, 28 de abril de 2007

Amorosa antecipação



Nem a intimidade de tua fronte clara como uma festa

nem o costume do teu corpo, ainda que misterioso e tácito e de menina,

nem a sucessão de tua vida em palavras ou silêncios

serão dádiva tão misteriosa

como contemplar teu sono envolvido

na vigília de meus braços.

Virgem milagrosamente outra vez, pela virtude absolutória do sono

quieta e resplandecente como um destino que a memória escolhe,

me darás essa margem de tua vida que tu mesma não possuis.

Lançado à quietude

divisarei essa praia última de teu ser

e ver-te-ei, quiçá pela primeira vez,

tal como Deus há de ver-te,

desbaratada a ficção do Tempo,

sem o amor, sem mim.


Jorge Luis Borges

sexta-feira, 27 de abril de 2007

... não foi preciso olhar o fundo transparente das palavras...


Amei a tua inquietação; e disseste-me que
te amei sem saber porquê, que as marés anunciavam
o luar que não chegou, que não foi preciso
olhar o fundo transparente das palavras
para que a sua verdade nos tocasse, que a tua mão
colheu o fruto da primeira árvore sem que nada
o impedisse.

Amei-te sem ter a certeza da manhã, sem ouvir
o vento que fez bater as janelas num eco do passado,
sem correr as cortinas do mundo para que
ninguém nos visse, sem apagar do teu rosto
o brilho da vida, enquanto as aves dormiam,
e o licor do sonho se derramava sobre os corpos
que cortavam a noite.

Mas ao seguir o seu rumo, o azul
floresceu das cinzas, a música despontou
dos silêncios da madrugada, e os teus olhos
amanheceram quando me disseste que
te amei, sem saber porquê.

Nuno Júdice

O amor é uma companhia




O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.

Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

Alberto Caeiro
10-7-1930

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Soneto de devoção

Vinícius de Moraes

Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica aos meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.

Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei
Os carinhos que nunca a outra daria.

Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela.

Essa mulher é um mundo! – uma cadela
Talvez... – mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!

... Como em casa...



Amor como em casa

Regresso devagar ao teu sorriso como quem volta a casa.
Faço de conta que não é nada comigo.
Distraído percorro o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro.
Devagar te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no amor como em casa.

Manuel António Pina

terça-feira, 24 de abril de 2007

A um ti que eu inventei

Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluír de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.

Um pesar grãos de nada em mínima balança
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.

Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir,

Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de louça
que apenas como o pensar te pudesses partir.


António Gedeão

domingo, 22 de abril de 2007

Sinfónico

O corpo-vivo pede,
anseia;
reclama consistência.
Broga do corpo a seiva-viva
guardada,
linfa de cor desconhecida,
desperta dalguma mágica
de amor:
brota da pele,
meio matéria, meio sonho.
O corpogente se estira;
já é tarde, e há horas longínquas
se contorce o sonho,
feito peça inacabada
para um piano difícil de afinar.
O corpo convive com suas coisas,
sentimentos, alma ali e aqui alinhavada,
verdades, suposições, quase-talvez;
e ruge o tímido gemido
que precede o solo apaixonado
do leão,
frente à leoa
que agoniza sua espera.
O corpóreo se balança entre perguntas
que visitam o etéreo, sem morarem
num ou noutro;
já os dois se enlaçam num arco,
íris! Sopro azul de enfim,
na madrugada
infinitamente adivinhada.

L. Cattaneo

sábado, 21 de abril de 2007

Beijo eterno


Castro Alves


Quero um beijo sem fim,
Que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo!
Ferve-me o sangue. Acalma-o com teu beijo,
Beija-me assim!
O ouvido fecha ao rumor
Do mundo, e beija-me, querida!
Vive só para mim, só para a minha vida,
Só para o meu amor!

Fora, repouse em paz
Dormindo em calmo sono a calma natureza,
Ou se debata, das tormentas presa,
Beija inda mais!
E, enquanto o brando calor
Sinto em meu peito de teu seio,
Nossas bocas febris se unam com o mesmo anseio,
Com o mesmo ardente amor!

...

Diz tua boca: "Vem!"
Inda mais! diz a minha, a soluçar... Exclama
Todo o meu corpo que o teu corpo chama:
"Morde também!"
Ai! morde! que doce é a dor
Que me entra as carnes, e as tortura!
Beija mais! morde mais! que eu morra de ventura,
Morto por teu amor!

Quero um beijo sem fim,
Que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo!
Ferve-me o sangue: acalma-o com teu beijo!
Beija-me assim!
O ouvido fecha ao rumor
Do mundo, e beija-me, querida!
Vive só para mim, só para a minha vida,
Só para o meu amor!

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Um régio soneto... de amor


Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma... Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua..., - unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... - abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus, não digas nada,
Deixa a vida exprimir-se sem disfarce!

José Régio

Este livro


este livro. passa um dedo pela página, sente o papel
como se sentisses a pele do meu corpo, o meu rosto.

este livro tem palavras. esquece as palavras por
momentos. o que temos para dizer não pode ser dito.

sente o peso deste livro. o peso da minha mão sobre
a tua. damos as mãos quando seguras este livro.

não me perguntes quem sou. não me perguntes nada.
eu não sei responder a todas as perguntas do mundo.

pousa os lábios sobre a página. pousa os lábios sobre
o papel. devagar, muito devagar. vamos beijar-nos.

José Luís Peixoto

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Camera da letto




L. Cattaneo
Tua cama
é um limite que,
no espaço,
não transponho.
A noite venta em meus olhos
esperanças adivinhas.
O dia guarda teu rosto
em cheiros sobre os lençóis,
em dobras na colcha
mole, amassada,
abandonada ao fugidio calor.
Olho o travesseiro
distraidamente.
A frouxa desordem
me emociona devagar.
Ainda assim, mantenho-me
atada aos cetins
duma certa distância.
Da cabeceira, que à noite
se acende para receber-te,
me vêm hipóteses
que cruzam infinitos
e maremotos possíveis.
Tua cama,
teu reino faceiro
desnudo em mistérios,
onde dominas a noite
com archotes de lua
e entregas ao sonho
a claridade tua.


Levo-te ao azul...


Alberto Serra

de partida para um lugar com telhados de silêncio
levo-te para não morrer nos braços exaustos do vazio
vais comigo com a tua mão desconhecida
a pontuar cada segundo de saudade
levo-te como se transportasse um segundo coração
oxigenado pelo que há-de vir
um fato de mergulhador
para tocar a mais secreta estrela do mar
cingida por algas
levo-te porque nenhuma palavra pode encher
este vaso de sol que desponta
em cada palavra tua
levo-te às cavalitas do sonho
na adolescente fogueira
onde ardem todas as sebes
todos os limites
levo-te em contramão
para transgredir docemente
as estradas e ruas e caminhos
os desejos de sentido único
levo-te simplesmente porque
tu és o meu farol que varre
todos os poros interditos
uma vela ao rubro
na mais fechada escuridão
levo-te no verso inacabado
porque o poema só
termina
quando acordares a meu lado

quarta-feira, 18 de abril de 2007

O teu riso



Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

Pablo Neruda

Os versos que te fiz




Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.


Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!


Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!


Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!


Florbela Espanca

terça-feira, 17 de abril de 2007

Pudesse eu...

Sophia de Mello Breyner Andresen

Pudesse eu não ter laços nem limites

Ó vida de mil faces transbordantes

Para poder responder aos teus convites

Suspensos na surpresa dos instantes!


domingo, 15 de abril de 2007

O amor

Nuno Júdice

Deus — talvez esteja aqui, neste
pedaço de mim e de ti, ou naquilo que,
de ti, em mim ficou. Está nos teus
lábios, na tua voz, nos teus olhos,
e talvez ande por entre os teus cabelos,
ou nesses fios abstractos que desfolho,
com os dedos da memória, quando os
evoco.

Existe: é o que sei quando
me lembro de ti. Uma relação pode durar
o que se quiser; será, no entanto, essa
impressão divina que faz a sua permanência? Ou
impõe-se devagar, como as coisas a que o
tempo nos habitua, sem se dar por isso, com
a pressão subtil da vida?

Um deus não precisa do tempo para
existir: nós, sim. E o tempo corre por entre
estas ausências, mete-se no próprio
instante em que estamos juntos, foge
por entre as palavras que trocamos, eu
e tu, para que um e outro as levemos
connosco, e com elas o que somos,
a ânsia efémera dos corpos, o
mais fundo desejo das almas.

Aqui, um deus não vive sozinho,
quando o amor nos junta. Desce dos confins
da eternidade, abandona o mais remoto dos
infinitos, e senta-se aos pés da cama, como
um cão, ouvindo a música da noite. Um
deus só existe enquanto o dia não chega; por
isso adiamos a madrugada, para que não
nos abandone, como se um deus
não pudesse existir para lá do amor, ou
o amor não se pudesse fazer sem um deus.

sábado, 14 de abril de 2007

O sorriso



Eugénio de Andrade

Creio que foi o sorriso,
sorriso foi quem abriu a porta
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

sexta-feira, 13 de abril de 2007

... que te amei...



"Todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor não serve de nada . Ficaram só os papeis e a tristeza, ficou só a amargura e a cinza dos cigarros e da morte.
Os domingos e as noites que passamos a fazer planos não foram suficientes e foram demasiados porque hoje são como sangue no teu rosto, são como lágrimas.
Sei que nos amamos muito e um dia, quando já não te encontrar em cada instante, em cada hora, não irei negar isso. Não irei negar isso nunca, que te amei, nem mesmo quando estiver deitado, nu, sobre os lençóis de outra e ela me obrigar a dizer que a amo antes de a foder ."

José Luís Peixoto

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Viajante


Tereza Tinoco


Eu me sinto tolo

como um viajante

pela tua casa



pássaro sem asa

rei da covardia


e se guardo tanto essas emoções

nessa caldeira fria



é que arde o medo

onde o amor ardia



Mansidão no peito

trazendo o respeito

que eu queria tanto

derrubar de vez



pra ser teu talvez

pra ser teu talvez



Mas o viajante

é talvez covarde

e talvez seja tarde


pra gritar que arde

no maior ardor



A paixão contida

retraída e nua

correndo na sala

ao te ver deitada


Ao te ver calada,

ao te ver cansada,

ao te ver no ar


Talvez esperando

desse viajante

algo que ele espera

também receber


e quebrar as cercas

com que insistimos

em nos defender.

domingo, 8 de abril de 2007

Ciranda da Bailarina


Edu Lobo - Chico Buarque

Procurando bem
Todo mundo tem pereba
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga,
tem ameba
Só a bailarina que não tem
E não tem coceira
Berruga nem frieira
Nem falta de maneira ela não tem
Futucando bem
Todo mundo tem piolho
Ou tem cheiro de creolina
Todo mundo tem
um irmão meio zarolho
Só a bailarina que não tem
Nem unha encardida
Nem dente com comida
Nem casca de ferida ela não tem
Não livra ninguém
Todo mundo tem remela
Quando acorda às seis da matina
Teve escarlatina
ou tem febre amarela
Só a bailarina que não tem
Medo de subir, gente
Medo de cair, gente
Medo de vertigem
Quem não tem
Confessando bem
Todo mundo faz pecado
Logo assim que a missa termina
Todo mundo tem
um primeiro namorado
Só a bailarina que não tem
Sujo atrás da orelha
Bigode de groselha
Calcinha um pouco velha
Ela não tem
O padre também
Pode até ficar vermelho
Se o vento levanta a batina
Reparando bem,
todo mundo tem pentelho
Só a bailarina que não tem
Sala sem mobília
Goteira na vasilha
Problema na família
Quem não tem
Procurando bem
Todo mundo tem



Pergunta - me


Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer


Mia Couto