quinta-feira, 28 de junho de 2007

Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo...


Não durmo, nem espero dormir. Nem na morte espero dormir.
Espera-me uma insónia da largura dos astros, e um bocejo inútil do comprimento do mundo.
Não durmo; não posso ler quando acordo de noite, não posso escrever quando acordo de noite, não posso pensar quando acordo de noite — Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!
Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!
Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo, e o meu sentimento é um pensamento vazio. Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam — todas aquelas de que me arrependo e me culpo; passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam — todas aquelas de que me arrependo e me culpo; passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada, e até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.
Não tenho força para ter energia para acender um cigarro. Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo. Lá fora há o silêncio dessa coisa toda. Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer, noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.
Estou escrevendo versos realmente simpáticos — versos a dizer que não tenho nada que dizer, versos a teimar em dizer isso, versos, versos, versos, versos, versos... Tantos versos... E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!
Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir. Sou uma sensação sem pessoa correspondente, uma abstração de autoconsciência sem de quê, salvo o necessário para sentir consciência, Salvo — sei lá salvo o quê...
Não durmo. Não durmo. Não durmo. Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma! Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!
Ó madrugada, tardas tanto... Vem... Vem, inutilmente, Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta... Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste, porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança, segundo a velha literatura das sensações.
Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança. O meu cansaço entra pelo colchão dentro. Doem-me as costas de não estar deitado de lado. Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado. Vem, madrugada, chega!
Que horas são? Não sei. Não tenho energia para estender uma mão para o relógio, Não tenho energia para nada, para mais nada... Só para estes versos, escritos no dia seguinte. Sim, escritos no dia seguinte. Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.
Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora. Paz em toda a Natureza. A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras. Exatamente. A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras. Costuma dizer-se isto. A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece, Mas mesmo acordada a Humanidade esquece. Exactamente. Mas não durmo.

Álvaro de Campos

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Sinto-me nascido a cada momento...


O MEU OLHAR
(Alberto Caeiro)

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E, de, vez em quando, olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo
Creio no mundo como num malmequer,
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Tentei fugir...


David Mourão-Ferreira

Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração.

domingo, 24 de junho de 2007

Canção da Lua...

Para me ouvires com a Lua, a essa tua distância...


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... que irá por onde fomos...



Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos.

Mário Cesariny

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Em todas as ruas te encontro...


Poema

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

Mário Cesariny

terça-feira, 19 de junho de 2007

Juro que não vou esquecer...


Nunca vou esquecer o olhar da rapariga que espera o tratamento de radioterapia. Sentada numa das cadeiras de plástico, o homem que a acompanha (o pai?) coloca-lhe uma almofada na nuca para ela encostar a cabeça à parede e assim fica, magra, imóvel, calada, com os olhos a gritarem o que ninguém ouve. O homem tira o lenço do bolso, passa-lho devagarinho na cara e os seus olhos gritam também: na sala onde tanta gente aguarda lá fora, algumas vindas de longe, de terras do Alentejo quase na fronteira, desembarcam pessoas de maca, um senhor idoso de fato completo, botão do colarinho abotoado, sem gravata, a mesma nódoa sempre na manga (a nódoa grita) caminhando devagarinho para o balcão numa dignidade de príncipe. É pobre, vê-se que é pobre, não existe um único osso que não lhe fure a pele, entende-se o sofrimento nos traços impassíveis e não grita com os olhos porque não tem olhos já, tem no lugar deles a mesma pele esverdeada que os ossos furam, a mão esquelética consegue puxar da algibeira o cartãozinho onde lhe marcam as sessões. Mulheres com lenços a cobrirem a ausência de cabelo, outras de perucas patéticas que não ligam com as feições nem aderem ao crânio, lhes flutuam em torno. E a imensa solidão de todos eles. À entrada do corredor, no espaço entre duas portas, uma africana de óculos chora sem ruído, metendo os polegares por baixo das lentes a secar as pálpebras. Chora sem ruído e sem um músculo que estremeça sequer, apagando-se a si mesma com o verniz estalado das unhas. Um sujeito de pé com um saco de plástico. Um outro a arrastar uma das pernas. A chuva incessante contra as janelas enormes. Plantas em vasos. Revistas que as pessoas não lêem. E eu, cheio de vergonha de ser eu, a pensar faltam-me duas sessões, eles morrem e eu fico vivo, graças a Deus sofri de uma coisa sem importância, estou aqui para um tratamento preventivo, dizem-me que me curei, fico vivo, daqui a pouco tudo isto não passou de um pesadelo, uma irrealidade, fico vivo, dentro de mim estas pessoas a doerem-me tanto, fico vivo como, a rapariga de cabeça encostada à parede não vê ninguém, os outros (nós) somos transparentes para ela, toda no interior do seu tormento, o homem poisa-lhe os dedos e ela não sente os dedos, fico vivo de que maneira, como, mudei tanto nestes últimos meses, os meus companheiros dão-me vontade de ajoelhar, não os mereço da mesma forma que eles não merecem isto, que estúpido perguntar
- Porquê ?
que estúpido indignar-me, zango-me com Deus, comigo, com a vida que tive, como pude ser tão desatento, tão arrogante, tão parvo, como pude queixar-me, gostava de ter os joelhos enormes de modo que coubessem no meu colo em vez das cadeiras de plástico
(não são de plástico, outra coisa qualquer, mais confortável, que não tenho tempo agora de pensar no que é)
isto que escrevo sai de mim como um vómito, tão depressa que a esferográfica não acompanha, perco imensas palavras, frases inteiras, emoções que me fogem, isto que escrevo não chega aos calcanhares do senhor idoso de fato completo
(aos quadradinhos, já gasto, já bom para deitar fora)
botão de colarinho abotoado, sem gravata e no entanto a gravata está lá, a gravata está lá, o que interessa a nódoa da manga
(a nódoa grita)
o que interessa que caminhe devagar para o balcão mal podendo consigo, doem-me os dedos da força que faço para escrever, não existe um único osso que não lhe fure a pele, entende-se o sofrimento nos traços impassíveis e não grita com os olhos porque não tem olhos já, tem no lugar deles a mesma pele esverdeada que os ossos furam e me observa por instantes, diga
- António
senhor, por favor diga
- António
chamo-me António, não tem importância nenhuma mas chamo-me António e não posso fazer nada por si, não posso fazer nada por ninguém, chamo-me António e não lhe chego aos calcanhares, sou mais pobre que você, falta-me a sua força e coragem, pegue-me antes você ao colo e garanta-me que não morre, não pode morrer, no caso de você morrer eu
no caso de você e da rapariga da almofada morrerem vou ter vergonha de estar vivo.

António Lobo Antunes - Visão 7/06/07

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Com o tempo...


Leo Ferré


Com o tempo...
Com o tempo tudo se acaba...
Esquecemos o rosto, esquecemos a voz; e quando o coração
bate mais forte
já não vale a pena partir, lançar-se ao mar, segui-lo aonde for...
melhor deixar estar... e tudo bem...

Com o tempo...
Com o tempo, tudo se acaba
O outro que adorávamos, que buscávamos mesmo em meio à chuva
o outro que adivinhávamos no cruzar de um olhar
- entre as palavras, nas entrelinhas e sob a máscara
dum juramento maquiado que sai a perder-se na noite...
Com o tempo, tudo se desvanece...

Com o tempo...
Com o tempo tudo se acaba
Mesmo as melhores lembranças têm para ti uma cara estranha
Na galeria vasculho as gavetas da morte,
na tarde de sábado, quando a ternura vai embora... sozinha...

Com o tempo...
Com o tempo acaba, tudo se acaba...

O outro em quem acreditávamos por um simples golpe de ar, por nada,
o outro a quem oferecemos o vento, as jóias,
por quem teríamos vendido a alma por alguns soldos
e diante de quem arrastávamo-nos como fazem os cães...
Com o tempo acaba, tudo fica bem...

Com o tempo...
Com o tempo acaba, tudo se acaba,
Esquecemos as paixões, esquecemos as vozes
que nos diziam baixinho as palavras dos humildes...
Não chegamos mais tão tarde,
e sobretudo não pegamos mais friagem...

Com o tempo...
Com o tempo acaba, tudo se acaba,
E a gente se sente exausto como um cavalo ferido
E a gente se sente congelado num leito de incertezas
E a gente se sente completamente só, talvez mais acomodado
E a gente se sente desfocado pelos anos perdidos – aliás, de facto,
Com o tempo, já não amamos mais...

(apeteceu-me arriscar-me e livre-traduzir...
para alguém que adora... e que adoro
)

sábado, 9 de junho de 2007

Escrevo-te a sentir...


escrevo-te a sentir tudo isto
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata da
fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto
ao fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva do lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco morde a
sua imobilidade

habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de romã
repara
como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar

Al Berto

Para que desses um nome à exactidão do instante...


O Livro dos Amantes

I

Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.

Para que desses um nome
à exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.

E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.

II

Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema
e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.

[...]

IX

Pusemos tanto azul nessa distância
ancorada em incerta claridade
e ficamos nas paredes do vento
a escorrer para tudo o que ele invade.

Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo.

Natália Correia

... vestida de mar...


Alfonsina Y El Mar


(Ariel Ramirez - Felix Luna)

Por la blanda arena
Que lame el mar
Su pequeña huella
No vuelve más
Un sendero solo
De pena y silencio llegó
Hasta el agua profunda
Un sendero solo
De penas mudas llegó
Hasta la espuma.

Sabe Dios qué angustia
Te acompañó
Qué dolores viejos
Calló tu voz
Para recostarte
Arrullada en el canto
De las caracolas marinas
La canción que canta
En el fondo oscuro del mar
La caracola.

Te vas Alfonsina
Con tu soledad
¿Qué poemas nuevos
Fuíste a buscar?
Una voz antigüa
De viento y de sal
Te requiebra el alma
Y la está llevando
Y te vas hacia allá
Como en sueños
Dormida, Alfonsina
Vestida de mar.

Cinco sirenitas
Te llevarán
Por caminos de algas
Y de coral
Y fosforescentes
Caballos marinos harán
Una ronda a tu lado
Y los habitantes
Del agua van a jugar
Pronto a tu lado.

Bájame la lámpara
Un poco más
Déjame que duerma
Nodriza, en paz
Y si llama él
No le digas nunca que estoy
Di que me he ido.

Te vas Alfonsina
Con tu soledad
¿Qué poemas nuevos
Fueste a buscar?
Una voz antigüa
De viento y de sal
Te requiebra el alma
Y la está llevando
Y te vas hacia allá
Como en sueños
Dormida, Alfonsina
Vestida de mar.

(A homenagem do grande Ariel Ramirez à poeta argentina Alfonsina Storni, que literalmente morreu de amor, de amar)

quinta-feira, 7 de junho de 2007

... bebo-te... como a água que rebenta das fontes...

BEBER-TE...

aqui tens a minha sede. as pedras dos rios
somente satisfazem a urgência maior
e nada diz de ti esse líquido que a sede sacia:
queria beber-te nas ondas do teu ciúme
e despedaçar-me no desejo dos teus lábios
queria alcançar a nuvem e colher a rebeldia
das gotas exaltantes dos teus beijos
queria a ribeira da tua pele como a água
que rebenta das fontes
e unidos na mesma sede alcançar o estertor
na cintilação dos mesmos horizontes
queria o incêndio escrito na mesma sede
e morrer no martírio de doçuras de amante

aqui tens a minha sede: fogo e água da tua boca
ardendo no azul de águas murmurantes.

Bernadete Costa

terça-feira, 5 de junho de 2007

..num abismo cheio de nada...


"Suavemente, deslizei entre os lençois e comecei a acariciá-la com a nostalgia, a tristeza e a felicidade com que um ancião acariciaria a criança que fora um dia. A mulher, longe de opor alguma resistência, deixava-se tocar com uma passividade feroz, repleta de gemidos que pareciam sair de todas as aberturas do seu corpo. Esta húmida como as paredes de uma gruta, suave, modelável e morna. Explorei, ansioso, cada ponto do seu corpo, e, invadido pelo seu cheiro, pelo seu toque, pela sua ternura, pelos seus humores, arrastei-a para o interior do roupeiro, fechei a porta e fundimo-nos num abismo fora de qualquer compreensão, cheio de nada, excepto do seu grito e do meu, que encheu o roupeiro e provocou o esvoaçar – sinistro e salvador – das roupas que o móvel continha.

Das nossas bocas de trevas não saiu uma palavra, os nossos olhos não chegaram a tocar o que viam as nossas mãos, mas os nossos corpos formaram arquitecturas impossíveis, sonhos, acoplamentos em que a sua necessidade e a minha ficaram unidas para sempre.

Quando o desejo enfraqueceu, surgiu o carinho, como surge o perfume de uma pétala apertada entre os dedos."

Juan José Millás, "Uma falta íntima" (excerto)

sábado, 2 de junho de 2007

Que amor não me engana...


Que amor não me engana
com a sua brandura
se de antiga chama
mal vive a amargura

Duma mancha negra
duma pedra fria
que amor não se entrega
na noite vazia

E as vozes embarcam
num silêncio aflito
quanto mais se apartam
mais se ouve o seu grito

Muito à flor das águas
noite marinheira
vem devagarinho
para a minha beira

Em novas coutadas
junto de uma hera
nascem flores vermelhas
pela Primavera

Assim tu souberas
irmã cotovia
dizer-me se esperas
p'lo nascer do dia


José Afonso

sexta-feira, 1 de junho de 2007

... Até ao dia em que nada ficou como era...


Cantiga

É pelo teu rosto em que as marés passam,
pelos teus lábios em que voam gaivotas,
pelos teus dedos em que a luz perpassa,
pelos teus olhos que me traçam as rotas,

que este barco encontra o caminho,
que este dia descobre que não é tarde,
que as palavras se bebem como vinho,
e o fogo não queima quando arde.

É no que me dizes quando a noite fala,
no que perdura da manhã que se esquece,
no que é dito em tudo o que se cala,
e não precisa de ser dito quando amanhece.

Pode ser o amor tantas vezes sentido,
ou só aquilo que vive no coração,
pode ser o que pensava ter esquecido,
e regressa agora pela tua mão.

Quantas vezes já foi primavera,
e logo aí as flores morreram:
até ao dia em que nada ficou como era,
e todas as folhas mortas reverdeceram.

Nuno Júdice

Eros de Passagem


1.
Apelo da manhã perdido em flor:
ave seria se não fosse ardor.

2.
Pelo sabor da água reconheço
a ternura e os flancos do verão.

3.
Um corpo brilha nu para o desejo
dançar na luz a pique das areias.

4.
Nas águas rumorosas da memória
contigo acabo agora de nascer.

5.
O vento inclina as hastes à luz dura:
a terra está próxima e madura.

Eugénio de Andrade