sábado, 21 de julho de 2007

Dias de anjos dourados...


Venite Adoremus

(ou "Dias de anjos dourados")


Cecília Prada

Seu Domênico tinha trancinhas e cheirava mal. Com o cabelo oleoso e comprido dos lados da cabeça ele tecia as trancinhas que amarrava atrás. Ela nunca tinha visto um homem com tranças. Cutucou a mãe e começou a rir. A mãe disse que ele era napolitano e que na terra dele os homens usavam o cabelo assim.
Seu Domênico era um dos homens muito importantes que iam cantar a Novena de Natal nos bancos da frente do Santuário. Esses homens todos parecidos com seu pai, meio gordos, meio velhos, se cumprimentavam levantando o chapéu na porta da igreja, alguns falavam italiano como seu Domênico e foi assim que ela aprendeu que Buona sera queria dizer boa-noite e não tinha nada que ver com a cera vermelha marca Parquetina que passavam no assoalho.
Importantes, separados das mulheres como se nem as conhecessem, eles avançavam pela ala central da igreja, que naqueles dias de anjos dourados estava toda acesa, e se dirigiam para os bancos da frente. Mas ela, única criança, única menina, ia com eles, os importantes, pela mão do Pai. Descobria risinhos nos olhos fugidios das senhoras que ficavam enroladas nos seus véus, de joelhos, cabeça baixa, enquanto o grupo dos vencedores caminhava de cabeça erguida, se dirigindo diretamente à divindade.
Os homens eram os da Irmandade do Santíssimo Sacramento, porque o mundo todo era dividido por idades, sexos, estado civil. E por cores. As moças solteiras eram Filhas de Maria - usavam vestido branco e sobre ele uma fita em V, verde e estreita para as aspirantes, azul e larga para as já admitidas. Uma fita com a medalha da Imaculada. Quando acabava a bênção elas tiravam a fita, beijavam a medalha, guardavam a fita dobrada na bolsa, um ritual que ela não via a hora de crescer e ficar moça para também poder fazer, de tão lindo que era.
Branco e azul eram as cores de Nossa Senhora e das moças virgens, porque Nossa Senhora tinha sido virgem antes, durante e depois do parto, e quem sabe o que aquilo queria dizer.
As mulheres casadas não podiam mais ser Filhas de Maria e nem usar vestido branco. Vestiam cores escuras, ou preto, e tinham uma fita vermelha. Eram todas meio gordas. E tristes, viviam suspirando. Por isso ela não ia casar nunca.
Os homens solteiros eram Filhos de Maria? Todo mundo tinha rido. As pessoas estavam sempre rindo das suas perguntas.
- Congregado Mariano, é assim que se diz, tinha corrigido o tio, que também usava uma fita azul sobre o terno cinzento.
Mas o mais bonito e importante mesmo eram os homens da Irmandade do Santíssimo, que usavam uma capinha vermelha chamada opa e tinham privilégios, levar tochas, carregar o pálio, que era um pano vermelho feito uma casinha de brinquedo estendida sobre quatro bastões, e que cobria o Santíssimo na procissão. Os homens, só eles, podiam carregar o pálio e chegar tão perto do Santíssimo, os homens mais velhos, sérios, casados e gordos, será que eles não tinham medo do Santíssimo? Ela tinha muito medo, de tão Santíssimo que era que até o Padre só podia pegar nele dentro daquela caixa dourada chamada ostensório e segurando com uma toalha dourada - senão queimava?
Porque o Santíssimo, ah, o Santíssimo, a gente não devia nem olhar para Ele quando o Padre levantava a hóstia consagrada, na missa.
- Abaixa a cabeça, menina.
Se olhasse, ficava cega?
O Santíssimo estava sempre relacionado com raios. O ostensório tinha raios dourados cercando o corpo de Nosso Senhor e quem pegasse na Hóstia Consagrada que era o corpo e o sangue de Nosso Senhor, vinha um raio do céu e fulminava. Chamava Sacrilégio.
Era um pecado que não tinha jeito. O pior pecado.
Mas o Padre pegava na hóstia. Porque ele lavava as mãos antes, numa bacia toda de ouro, enquanto o coroinha de vermelho podia ficar perto dele, porque era menino. E só o Padre, porque era Padre e porque era homem, podia pegar na hóstia. Mulher não pegava, não podia pegar nunca.
- Nem se eu lavar bem a mão antes?
- Nem.
E quando mais tarde, cinco escassos aninhos depois, aos dez, ficou menstruada, um dia estava ajudando a mãe a fazer a massa do pão e a massa azedou por sua culpa e então ela compreendeu porque mulher não podia pegar no corpo de Nosso Senhor, porque senão azedava o corpo de Nosso Senhor.
...O sangue da menstruação tinha um cheiro meio azedo, ser mulher era isso, então, o sangue escondido, a humilhação, o secreto, o manter-se sempre nos cantos, na sombra, ajoelhada nos bancos do fundo da igreja enquanto os homens passavam de cabeça empinada buscando nos bancos da frente o lugar que lhes pertencia por direito divino.
Mas ela - diferente de todos seria, das mulheres, das outras crianças - ela, porque somente ela admitida, com afagos, nos seus cinco anos de cachinhos cor de avelã, no coro dos homens, na Novena de Natal, e se tivesse sorte conseguia puxar o pai para um banco bem longe do seu Domênico, que tinha trancinhas e cheirava mal.
O coro masculino lá perto do órgão cantava em latim. Naqueles dias Dona Francisca, a organista, descansava. Vinha um organista de fora, um homem, porque mulher só servia para o todo-dia mesmo, dizia o Pai. Os padres da Congregação entoavam, e o coro dos irmãos do Santíssimo respondia, num refrão:
Rege venturum Domine
Venite adoremus

E a mãe, e a tia, riam dela, diziam que tinham ouvido uma vozinha desafinada que cantava:
Lege ventulum Domine
Venite adolemus

Mas ela nem ligava. Ela sabia latim. Ela cantava com os homens. Ela era diferente.
Tinha conquistado o direito à fala.

daqui

2 comentários:

Frioleiras disse...

Lindo !
O teu blogue...


F.

b. disse...

Obrigada! Gostei também do teu... Apareça sempre! Um abraço