quinta-feira, 31 de maio de 2007

Agora que sinto amor

Agora que sinto amor
Tenho interesse no que cheira.
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver.


Alberto Caeiro, 27 de julho de 1930

terça-feira, 29 de maio de 2007

Traduzir-se



Ferreira Gullar

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

segunda-feira, 28 de maio de 2007

O filho da morte (no campo de refugiados)

"A mulher estava morta, em puro e total falecimento. Seu ventre inchado recortava o inteiro azul. O cadáver, adiantado, não tinha salvação. À sua volta, zunzunavam as moscas, devotas carpideiras.
Daquele corpo não se esperava senão o último pudor: que ele se cobrisse, em deferência à vida. Convidasse a poeira, invocasse a noite, fizesse o que entendesse mas poupasse o olhar dos viventes.

Porque, naquele lugar, já não havia forças para enterrar ninguém. Os defuntos se extinguissem às suas custas. Os outros, únicos residentes, estavam demasiado ocupados em sobrevivências.

Refugiados, ali restavam, sem fazer favor à morte. Por que não cediam, noivos que estavam da ausência? Seria recordação da esperança, saudade de um antigamente?

Talvez, por isso, eles se tiravam da visão da defunta. Os refugiados se doseavam, nas aplicações da tristeza. Estarem vivos era o seu resguardado segredo. Estivessem eles no território da vida e teriam seguido a tradição: levavam a grávida à cova e, antes de a sepultarem, lhe abriam o ventre. Nem que fosse para ganharem certeza sobre o sexo do feto. Mas agora não, todos se faziam ninguém.

E assim a morta teimava em sua solidão. Parecia assunto apenas capaz de esquecimento quando do corpo começou a emergir uma levíssima respiração. Parecia que as costelas regressavam à sua imperceptível dança. O que seria?
- É inchaço dos gases, digestão do falecidos.

Os presentes se aproximaram, atraídos pelo lampejo da sua pele luzidia. Espreitaram, debicaram com os olhos. Foi quando, de entre as coxas da falecida, se viu o desfolhar de um pequeno corpo.

Os olhos se alargaram de espanto a espanto. A coisa carnuda progredia, excrescendo como um desembrulho, ventro afora. A morta estava, creia-se, em obras de parto. A vida, em seu corpo, fazia horas extraordinárias.

Ninguém mexeu, nenhuma mão se baixou. Fosse a criança filha da vida e todas as mulheres se anunciariam de tias, incontáveis seriam os peitos de amamentar. Mas aquele menino nascera da foz para a fonte, em avessa e agoirenta execução.

Nem valesse o recém-nascido declarar uma choradeira, beicinho a convidar compaixão. Os presentes já davam costas ao sucedido e se afastavam em arrastados passos. Parecia os pés deles eram pertença antecipada do chão, ambos em recíproco afecto.

Foi quando Tazarina se desapinhou da multidão. Ela tinha um ar de a si mesmo se faltar. Se conheci por ser cabistonta, esquisofrenética, mazalenta e tão magra que, mesmo sem roupa, a sua nudez não se notava. Nunca se lhe ouvira palavra, vogalzinha que fosse. Faltava-lhe o cabelo, restando duas magras tranças caídas sobre a testa. Tazarina sempre toda tremia, nem sequer suas mãos ela segurava. Bamboleava de várias bandas, parecendo ter mais joelhos que pernas, um número ímpar e infinito de tornozelos.

Sua única ocupação era apanhar cigarras. Junto das acácias ela chamava os bichos, imitando-lhes o canto. Segurava-lhes com os seus dedos trémulos, abria um furo entre as asas e passava-lhes um fio. Depois amarrava-lhes, nas orelhas, a servirem de brincos vivos e sonoros. As cigarras, diziam-se, eram elas que lhe tinham comido o cabelo.

Pois foi esta definhosa, maleijadíssima mulher que se achegou ao nascido e dele se ocupou. Levantou o orfãozito por um braço, erguendo-lhe acima da cabeça. Em seu desajeito devia de magoar o pequeno. Contudo, mesmo em tal desconforto, o menino parou de chorar. E quando Tazarina lhe ofereceu o regaço, o menino procurou o seio dela, sem recheio. À medida que dava mama, Tazarina se ia perfilando mais e mais segura, capaz de exercer ternuras. Seu corpo ensaiava mesmo a graça de ser mulher.

Foi então: os refugiados assistiram ao que nem davam crédito. Pois a pobre mulher começou de cantar. Já não se servia de rouquejos. Antes debitava doces embalos. Aos poucos ela se ia enchendo de corpo, os seus seios se avolumavam, os olhos se maternizavam, seus cabelos se preenchiam, capazes de pentes e penteados.

O menino se saciou e encostou no colo de Tazarina o seu primeiro sorriso. De longe, alguém atirou um pano que Tazarina apanhou e usou para cobrir a criança.

Depois, ela se afastou em caminhar sereno, altiva como se houvesse estrada e o destinno fosse sua exclusiva posse. A um momento, Tazarina se voltou para encarar a multidão. Nunca se viu, dizem, mãe em tanta compostura. O rosto dela merecia toda a luz. De cada lado pendia a fulgência de ouro. As cigarras, seus antigos brincos, se haviam convertido em metal, com sonoras cintilâncias.

Refaçam-se agora as contas da humanidade habitável. Pois cada menino nascido faz nascer uma mãe de uma respectiva mulher. Assim, cada ser novo triplica o número de viventes. Um filho, afinal, é quem dá à luz a mãe."

MIA COUTO

domingo, 27 de maio de 2007

Êxtase...



Não sofras mais, amor, não digas nada!
Vem comigo; eu te levo. A noite é densa
e agora a voz do mar ficou suspensa,
dolorida, vibrante,apaixonada!

Não tarda muito a luz da madrugada...
Vem comigo! Não penses!
Não se pensa !
Vem à comquista da aventura imensa,
vê, como eu vou, feliz e deslumbrada!

Um grande sonho me enlouquece e invade!
Vem procurar comigo a Eternidade
esse país tão vago, tão distante...

Vem, que eu busco o palácio da quimera,
lá, onde seja eterna a primavera,
e a voz divina das estrelas cante!

Virgínia Victorino

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Sabor a Vinicius



(Apeteceu-me lembrar Vinicius e seu (e)terno talento para seduzir)


Para uma menina com uma flor

Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, que aliás você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.
E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque você quando sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre num nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, como uma santa moderna, e anda lento, a fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der aquela paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.
E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta mas não concorda porque é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara– na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.
E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as outras mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, "Minha namorada", a fim de que, quando eu morrer, você se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse, cantando sem voz aquele pedaço em que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois.
E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora – tão purinha entre as marias-sem-vergonha – a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nestas montanhas recortadas pela mão presciente de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos – eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão, de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfeitando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações – porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Até pensei que...


Chico Buarque de Hollanda

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Até Pensei


Junto à minha rua havia um bosque
Que um muro alto proibia
Lá todo balão caia
Toda maçã nascia
E o dono do bosque nem via
Do lado de lá tanta aventura
E eu a espreitar na noite escura
A dedilhar essa modinha
A felicidade
Morava tão vizinha
Que, de tolo
Até pensei que fosse minha
Junto a mim morava a minha amada
Com olhos claros como o dia
Lá o meu olhar vivia
De sonho e fantasia
E a dono dos olhos nem via
Do lado de lá tanta ventura
E eu a esperar pela ternura
Que a enganar nunca me vinha
Eu andava pobre
Tão pobre de carinho
Que, de tolo
Até pensei que fosse minha

Toda a dor da vida
Me ensinou essa modinha
Que, de tolo
Até pensei que fosse minha

(Chico, espécie de pão musical na nossa vida, num de seus momentos de maior lirismo)

domingo, 20 de maio de 2007

Como é possível perder-te?...


Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda

Maria Teresa Horta

quarta-feira, 16 de maio de 2007

... e de ti renasces a toda a hora...



Amor

Irene Lisboa

Aqueles olhos aproximam-se e passam.
Perplexos, cheios de funda luz,
doces e acerados, dominam-me.
Quem os diria tão ousados?
Tão humildes e tão imperiosos,
tão obstinados!

Como estão próximos os nossos ombros!
Defrontam-se e furtam-se,
negam toda a sua coragem.
De vez em quando,
esta minha mão,
que é uma espada e não defende nada,
move-se na órbita daqueles olhos,
fere-lhes a rota curta,
Poderosa e plácida.

Amor, tão chão de Amor,
que sensível és...
Sensível e violento, apaixonado.
Tão carregado de desejos!

Acalmas e redobras
e de ti renasces a toda a hora.
Cordeiro que se encabrita e enfurece
e logo recai na branda impotência.

Canseira eterna!
Ou desespero, ou medo.
Fuga doida à posse, à dádiva.
Tanto bater de asas frementes,
tanto grito e pena perdida...
E as tréguas, amor cobarde?
Cada vez mais longe,
mais longe e apetecidas.
Ó amor, amor,
que faremos nós de ti
e tu de nós?

terça-feira, 15 de maio de 2007

Olhámo-nos um dia...




ADÃO E EVA

José Régio

Olhámo-nos um dia,
E cada um de nós sonhou que achara
O par que a alma e a cara lhe pedia.

- E cada um de nós sonhou que o achara...

E entre nós dois
Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente,
... Se deu, e se dará continuamente:

Na palma da tua mão,
Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.

- Meu nome é Adão...

E em que furor sagrado
Os nossos corpos nus e desejosos
Como serpentes brancas se enroscaram,
Tentando ser um só!

Ó beijos angustiados e raivosos
Que as nossas pobres bocas se atiraram
Sobre um leito de terra, cinza e pó!

Ó abraços que os braços apertaram,
Dedos que se misturaram!

Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri,
Sede que nada mata, ânsia sem fim!
- Tu de entrar em mim,
Eu de entrar em ti.

Assim toda te deste,
E assim todo me dei:

Sobre o teu longo corpo agonizante,
Meu inferno celeste,
Cem vezes morri, prostrado...
Cem vezes ressuscitei
Para uma dor mais vibrante
E um prazer mais torturado.

E enquanto as nossas bocas se esmagavam,
E as doces curvas do teu corpo se ajustavam
Às linhas fortes do meu,
Os nossos olhos muito perto, imensos,
No desespero desse abraço mudo,
Confessaram-se tudo!
... Enquanto nós pairávamos, suspensos
Entre a terra e o céu.

Assim as almas se entregaram,
Como os corpos se tinham entregado,
Assim duas metades se amoldaram
Ante as barbas, que tremeram,
Do velho Pai desprezado!

E assim Eva e Adão se conheceram:

Tu conheceste a força dos meus pulsos,
A miséria do meu ser,
Os recantos da minha humanidade,
A grandeza do meu amor cruel,
Os veios de oiro que o meu barro trouxe...

Eu, os teus nervos convulsos,
O teu poder,
A tua fragilidade
Os sinais da tua pele,
O gosto do teu sangue doce...

Depois...

Depois o quê, amor? Depois, mais nada,
- Que Jeová não sabe perdoar!

O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada...

Continuamos a ser dois,
E nunca nos pudemos penetrar!

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Um incendio dentro, dentro, dentro dos dias...





José Luis Peixoto

"...O amor é o sangue do sol dentro do sol. A inocência repetida mil vezes na vontade sincera de desejar que o céu compreenda. Levantam-se tempestades frágeis e delicadas na respiração vegetal do amor. Como uma planta a crescer da terra.
O amor é a luz do sol a beber a voz doce dessa planta. Algo dentro de qualquer coisa profunda.
O amor é o sentido de todas as palavras impossiveis. Atravessar o interior de uma montanha. Correr pelas horas originais do mundo.
O amor é a paz fresca da combustão de um incêndio dentro, dentro, dentro, dentro, dentro dos dias. Em cada instante de manhã, o céu a deslizar como um rio. À tarde, o sol como uma certeza.
O amor é feito de claridade e da seiva das rochas.
O amor é feito de mar, de ondas na distância do oceano e da areia eterna. O amor é feito de tantas coisas opostas e verdadeiras. Nascem lugares para o amor e, nesses jardins etéreos, a salvação é uma brisa que cai sobre o rosto suavemente."

("Uma Casa na Escuridão")

segunda-feira, 7 de maio de 2007

Desperta-me de noite



Desperta-me de noite

o teu desejo

na vaga dos teus dedos

com que vergas

o sono em que me deito


É rede a tua língua

em sua teia

é vício

as palavras

com que falas


A trégua

a entrega

o disfarce


E lembras os meus ombros

docemente

na dobra do lençol que desfazes


Desperta-me de noite

com o teu corpo

tiras-me do sono

onde resvalo


E eu pouco a pouco

vou repelindo a noite

e tu dentro de mim

vais descobrindo vales.


Maria Teresa Horta

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Neruda, eterno, em clima de ouro

Pablo Neruda



Hoje deitei-me junto a uma jovem pura

como se na margem de um oceano branco,

como se no centro de uma ardente estrela

de lento espaço. Do seu olhar largamente verde

a luz caía como uma água seca,

em transparentes e profundos círculos

de fresca força. Seu peito como um fogo de duas chamas

ardía em duas regiões levantado,

e num duplo rio chegava a seus pés,

grandes e claros. Um clima de ouro madrugava apenas

as diurnas longitudes do seu corpo

enchendo-o de frutas extendidas

e oculto fogo.

quarta-feira, 2 de maio de 2007

... em cada rima um canto de amor...






Nuno Júdice




Quando a poesia tem o teu rosto,

e o verso coincide com o número

dos teus dedos, volto a contar a métrica

pelo silêncio duns lábios fechados.

Sinto em cada sílaba a tua pele,

ouço em cada rima um canto de amor;

e se a conta não acerta no fim,

volto à tabuada que me ensinaste.

Ponho o singular do corpo na mesa,

tiro o plural dos olhos do caderno;

divido pelos ombros os cabelos,

somo aos seios o véu que os encobre.


Aprendemos...




Jorge Luís Borges

Após um tempo,
Aprendemos a diferença subtil
Entre segurar uma mão
E acorrentar uma alma,
E aprendemos
Que o amor não significa deitar-se
E uma companhia não significa segurança
E começamos a aprender...
Que os beijos não são contratos
E os presentes não são promessas
E começamos a aceitar as derrotas
De cabeca levantada e os olhos abertos
Aprendemos a construir
Todos os seus caminhos de hoje,
Porque a terra amanhã
É demasiado incerta para planos...
E os futuros têm um forma de ficarem
Pela metade.
E depois de um tempo
Aprendemos que se for demasiado,
Até um calorzinho do sol queima.
Assim plantamos nosso próprio jardim
E decoramos nossa própria alma,
Em vez de esperarmos que alguém nos traga flores.
E aprendemos que realmente podemos aguentar,
Que somos realmente fortes,
Que valemos realmente a pena,
E aprendemos e aprendemos...
E em cada dia aprendemos.

(Trad. Luís Eusébio)

terça-feira, 1 de maio de 2007

... até minh'alma se sentir beijada...



Chico Buarque

O meu amor

Tem um jeito manso que é só seu

E que me deixa louca

Quando me beija a boca

A minha pele toda fica arrepiada

E me beija com calma e fundo

Até minh'alma se sentir beijada, ai

O meu amor

Tem um jeito manso que é só seu

Que rouba os meus sentidos

Viola os meus ouvidos

Com tantos segredos lindos e indecentes

Depois brinca comigo

Ri do meu umbigo

E me crava os dentes, ai

Eu sou sua menina, viu?

E ele é o meu rapaz

Meu corpo é testemunha

Do bem que ele me faz

O meu amor

Tem um jeito manso que é só seu

De me deixar maluca

Quando me roça a nuca

E quase me machuca com a barba malfeita

E de pousar as coxas entre as minhas coxas

Quando ele se deita, ai

O meu amor

Tem um jeito manso que é só seu

De me fazer rodeios

De me beijar os seios

Me beijar o ventre

E me deixar em brasa

Desfruta do meu corpo

Como se o meu corpo fosse a sua casa, ai

Eu sou sua menina, viu?

E ele é o meu rapaz

Meu corpo é testemunha

Do bem que ele me faz




... as ilhas que só há no verbo amar...



Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.

Amor ardente. Amor ardente. E mar.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.
E mar. Amar: as coisas perigosas.

Contar-te longamente que já foi
Num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te longamente como dói

desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas.

(Manuel Alegre)