sexta-feira, 19 de outubro de 2007
...creio na ocupação do mundo pelas rosas...
Creio nos anjos que andam pelo mundo,
creio na deusa com olhos de diamantes,
creio em amores lunares com piano ao fundo,
creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes;
creio num engenho que falta mais fecundo
de harmonizar as partes dissonantes,
creio que tudo é eterno num segundo,
creio num céu futuro que houve dantes,
creio nos deuses de um astral mais puro,
na flor humilde que se encosta ao muro,
creio na carne que enfeitiça o além,
creio no incrível, nas coisas assombrosas,
na ocupação do mundo pelas rosas,
creio que o amor tem asas de ouro. Amén.
Natália Correia
terça-feira, 16 de outubro de 2007
E alegre se fez triste
Adriano Correia de Oliveira, 25 anos de ausência
(09/04/1942 - 16/10/1982)
(09/04/1942 - 16/10/1982)
Aquela clara madrugada que
Viu lágrimas correrem no teu rosto
E alegre se fez triste
como se chovesse de repente em pleno Agosto
Ela só viu meus dedos nos teus dedos
Meu nome no teu nome e demorados
Viu nossos olhos juntos nos segredos
Que em silêncio dissemos separados
A clara madrugada em que parti
Só ela viu teu rosto olhando a estrada
Por onde o automóvel se afastava
E viu que a pátria estava toda em ti
E ouviu dizer adeus essa palavra
Que fez tão triste a clara madrugada
Que fez tão triste a clara madrugada
(Manuel Alegre - Adriano Correia de Oliveira)
segunda-feira, 15 de outubro de 2007
Sorria dentro de mim... uma descoberta muito casta
Fonte
Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo --- cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.
Ninguém falava dela, porque
era imensa. Mas todos a sabiam
como a teta. Como o odre.
Algo sorria dentro de nós.
Minhas irmãs faziam-se mulheres
suavemente. Meu pai lia.
Sorria dentro de mim uma aceitação
do trevo, uma descoberta muito casta.
Era a fonte.
Eu amava-a dolorosa e tranquilamente.
A lua formava-se
com uma ponta subtil de ferocidade,
e a maçã tomava um princípio
de esplendor.
Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento
perdeu-se e renasceu.
Hoje sei permanentemente que ela
é a fonte.
Herberto Helder
domingo, 14 de outubro de 2007
Folhas de Eugénio
APENAS UM RUMOR
E no teu rosto aberto sobre o mar
cada palavra era apenas o rumor
de um bando de gaivotas a passar.
COM AS GAIVOTAS
Contente de me dar como as gaivotas
bebo o outono e a tarde arrefecida.
Perfeito o céu, perfeito o mar, e esse amor
por mais que digam é perfeito como a vida.
Tenho tristezas como toda a gente.
E como toda a gente quero alegria.
Mas hoje sou de um céu que tem gaivotas,
leve o diabo essa morte dia a dia.
RETRATO
No teu rosto começa a madrugada.
Luz abrindo,
de rosa em rosa,
transparente e molhada.
Melodia
distante mas segura;
irrompendo da terra,
quente, redonda, madura.
Mar imenso,
praia deserta, horizontal e calma.
Sabor agreste.
Rosto da minha alma.
Eugénio de Andrade
terça-feira, 9 de outubro de 2007
habito este país de água por engano
escrevo-te a sentir tudo isto
e num momento de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de
prata da fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurados junto
ao fogo
e deambular trêmulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco
morde a sua imobilidade
habito neste país de água por engano
são-me necessárias radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de
romã
repara
como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar
Al Berto
sábado, 6 de outubro de 2007
Por gosto e homenagem
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assim negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida,
começa de servir outros sete anos
dizendo: "Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida".
Luís Vaz de Camões
quarta-feira, 3 de outubro de 2007
... por instinto e uma certa paixão...
somos uma árvore nem sempre
pensada. vimos uns dos outros como
se fossemos terra uns dos outros, terra e
sangue, ágil sobre o tempo por
instinto e uma certa paixão. somos
uma árvore nem sempre erguida.
temo-nos uns aos outros como
causas e efeitos em busca dos
caminhos e uma certa paixão.
somos uma árvore nem sempre
razoável. magoamo-nos uns aos
outros como necessitados de coisas
más sem grandes razões e de
uma certa paixão
Valter Hugo Mãe
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