segunda-feira, 30 de julho de 2007

Para fazer o retrato de um pássaro

Foto: Maria Corcacas




Pinta primeiro uma gaiola

com a porta aberta

pinta a seguir

qualquer coisa bonita

qualquer coisa simples

qualquer coisa bela

qualquer coisa útil

para o pássaro

agora encosta a tela a uma árvore

num jardim

num bosque

ou até numa floresta

esconde-te atrás da árvore

sem dizeres nada

sem te mexeres...

Às vezes o pássaro não demora

mas pode também levar anos

antes que se decida

Não deves desanimar

espera

espera anos se for preciso

a rapidez ou a lentidão da chegada

do pássaro

não tem qualquer relação

com o acabamento do quadro

Quando o pássaro chegar

se chegar

mergulha no mais fundo silêncio

espera que o pássaro entre na gaiola

e quando tiver entrado

fecha a porta devagarinho com o pincel

depois

apaga uma a uma todas as grades

com cuidado não vás tocar nalguma das penas

Faz a seguir o retrato da árvore

escolhendo o mais belo dos ramos

para o pássaro

pinta também o verde da folhagem a frescura do vento

a poeira do sol

e o ruído dos bichos entre as ervas no calor do verão

e agora espera que o pássaro se decida a cantar

se o pássaro não cantar

é mau sinal

é sinal

que o quadro não presta

mas se cantar é bom sinal

sinal de que podes assinar

então arranca com muito cuidado

uma das penas do pássaro

e escreve o teu nome num canto do quadro.



Eugénio de Andrade

in "Trocar de Rosa"

quinta-feira, 26 de julho de 2007

O repouso é menos que uma palavra...

Foto:Getzher

Alguns instantes

Onde é que guardo o tempo? Posso agora dizer-vos
que é dentro dos olhos. Mesmo que se conservem assim límpidos
acabam por pousar neles algumas folhas. Procuro depois
que seja mais fácil este caminho onde se encontram os vestígios
dos meus passos, de qualquer encontro, de um gesto ainda
furtivo. Quantas sombras existem aí e me pertencem? Sei
que o repouso é menos que uma palavra. Talvez cheguem
as mesmas ondas que julgávamos estar há muito esquecidas,
a neblina parece ser um arco onde se reúne
o que ficou abandonado para sempre. É assim que começo a medir
o tempo. Alguns instantes reservo-os para a profundidade
da água; outros para o modo como as minhas mãos estremecem.

sábado, 21 de julho de 2007

Dias de anjos dourados...


Venite Adoremus

(ou "Dias de anjos dourados")


Cecília Prada

Seu Domênico tinha trancinhas e cheirava mal. Com o cabelo oleoso e comprido dos lados da cabeça ele tecia as trancinhas que amarrava atrás. Ela nunca tinha visto um homem com tranças. Cutucou a mãe e começou a rir. A mãe disse que ele era napolitano e que na terra dele os homens usavam o cabelo assim.
Seu Domênico era um dos homens muito importantes que iam cantar a Novena de Natal nos bancos da frente do Santuário. Esses homens todos parecidos com seu pai, meio gordos, meio velhos, se cumprimentavam levantando o chapéu na porta da igreja, alguns falavam italiano como seu Domênico e foi assim que ela aprendeu que Buona sera queria dizer boa-noite e não tinha nada que ver com a cera vermelha marca Parquetina que passavam no assoalho.
Importantes, separados das mulheres como se nem as conhecessem, eles avançavam pela ala central da igreja, que naqueles dias de anjos dourados estava toda acesa, e se dirigiam para os bancos da frente. Mas ela, única criança, única menina, ia com eles, os importantes, pela mão do Pai. Descobria risinhos nos olhos fugidios das senhoras que ficavam enroladas nos seus véus, de joelhos, cabeça baixa, enquanto o grupo dos vencedores caminhava de cabeça erguida, se dirigindo diretamente à divindade.
Os homens eram os da Irmandade do Santíssimo Sacramento, porque o mundo todo era dividido por idades, sexos, estado civil. E por cores. As moças solteiras eram Filhas de Maria - usavam vestido branco e sobre ele uma fita em V, verde e estreita para as aspirantes, azul e larga para as já admitidas. Uma fita com a medalha da Imaculada. Quando acabava a bênção elas tiravam a fita, beijavam a medalha, guardavam a fita dobrada na bolsa, um ritual que ela não via a hora de crescer e ficar moça para também poder fazer, de tão lindo que era.
Branco e azul eram as cores de Nossa Senhora e das moças virgens, porque Nossa Senhora tinha sido virgem antes, durante e depois do parto, e quem sabe o que aquilo queria dizer.
As mulheres casadas não podiam mais ser Filhas de Maria e nem usar vestido branco. Vestiam cores escuras, ou preto, e tinham uma fita vermelha. Eram todas meio gordas. E tristes, viviam suspirando. Por isso ela não ia casar nunca.
Os homens solteiros eram Filhos de Maria? Todo mundo tinha rido. As pessoas estavam sempre rindo das suas perguntas.
- Congregado Mariano, é assim que se diz, tinha corrigido o tio, que também usava uma fita azul sobre o terno cinzento.
Mas o mais bonito e importante mesmo eram os homens da Irmandade do Santíssimo, que usavam uma capinha vermelha chamada opa e tinham privilégios, levar tochas, carregar o pálio, que era um pano vermelho feito uma casinha de brinquedo estendida sobre quatro bastões, e que cobria o Santíssimo na procissão. Os homens, só eles, podiam carregar o pálio e chegar tão perto do Santíssimo, os homens mais velhos, sérios, casados e gordos, será que eles não tinham medo do Santíssimo? Ela tinha muito medo, de tão Santíssimo que era que até o Padre só podia pegar nele dentro daquela caixa dourada chamada ostensório e segurando com uma toalha dourada - senão queimava?
Porque o Santíssimo, ah, o Santíssimo, a gente não devia nem olhar para Ele quando o Padre levantava a hóstia consagrada, na missa.
- Abaixa a cabeça, menina.
Se olhasse, ficava cega?
O Santíssimo estava sempre relacionado com raios. O ostensório tinha raios dourados cercando o corpo de Nosso Senhor e quem pegasse na Hóstia Consagrada que era o corpo e o sangue de Nosso Senhor, vinha um raio do céu e fulminava. Chamava Sacrilégio.
Era um pecado que não tinha jeito. O pior pecado.
Mas o Padre pegava na hóstia. Porque ele lavava as mãos antes, numa bacia toda de ouro, enquanto o coroinha de vermelho podia ficar perto dele, porque era menino. E só o Padre, porque era Padre e porque era homem, podia pegar na hóstia. Mulher não pegava, não podia pegar nunca.
- Nem se eu lavar bem a mão antes?
- Nem.
E quando mais tarde, cinco escassos aninhos depois, aos dez, ficou menstruada, um dia estava ajudando a mãe a fazer a massa do pão e a massa azedou por sua culpa e então ela compreendeu porque mulher não podia pegar no corpo de Nosso Senhor, porque senão azedava o corpo de Nosso Senhor.
...O sangue da menstruação tinha um cheiro meio azedo, ser mulher era isso, então, o sangue escondido, a humilhação, o secreto, o manter-se sempre nos cantos, na sombra, ajoelhada nos bancos do fundo da igreja enquanto os homens passavam de cabeça empinada buscando nos bancos da frente o lugar que lhes pertencia por direito divino.
Mas ela - diferente de todos seria, das mulheres, das outras crianças - ela, porque somente ela admitida, com afagos, nos seus cinco anos de cachinhos cor de avelã, no coro dos homens, na Novena de Natal, e se tivesse sorte conseguia puxar o pai para um banco bem longe do seu Domênico, que tinha trancinhas e cheirava mal.
O coro masculino lá perto do órgão cantava em latim. Naqueles dias Dona Francisca, a organista, descansava. Vinha um organista de fora, um homem, porque mulher só servia para o todo-dia mesmo, dizia o Pai. Os padres da Congregação entoavam, e o coro dos irmãos do Santíssimo respondia, num refrão:
Rege venturum Domine
Venite adoremus

E a mãe, e a tia, riam dela, diziam que tinham ouvido uma vozinha desafinada que cantava:
Lege ventulum Domine
Venite adolemus

Mas ela nem ligava. Ela sabia latim. Ela cantava com os homens. Ela era diferente.
Tinha conquistado o direito à fala.

daqui

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Um pouco de Jacques Brel, para não nos deixar esquecer...


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Canção dos eternos amantes

Jacques Brel

É certo que tivemos nossas tormentas
em vinte anos de amor... desse louco amor...
Fizeste tuas malas mil vezes,
mil vezes também eu parti...
E cada móvel deste quarto
onde não há um berço
lembra-se bem da força
com que rebentavam
nossas velhas tempestades.

Nada mais lembrava o que fomos;
tu havias perdido o gosto pela água
e eu, o prazer da conquista.

Mas, meu amor,
meu doce, terno,
maravilhoso amor!...
Da clara aurora até o fim do dia
eu continuo a amar-te,
tu sabes,
amo-te.


Conheço todos os teus sortilégios,
e tu, todos os meus encantamentos...
Tu me poupaste, cuidaste de mim
a cada cilada da vida.

De tempos em tempos, eu te perdia...
Tiveste alguns amantes, é claro;
era preciso preencher o tempo.
E o corpo precisa de êxtase.

Enfim, enfim,
foi preciso muito talento
para envelhecermos e, ainda assim,
não virarmos adultos...

Ah, meu amor,
meu doce, terno,
maravilhoso amor!...
Da clara aurora até o fim do dia
eu continuo a amar-te,
tu sabes,
amo-te.


E quanto mais o tempo
nos segue os passos,
mais suplícios nos traz.

Mas não será viver em paz
a pior armadilha para os amantes?

É bem verdade que agora tu choras menos
e eu demoro mais a atormentar-me.

Protegemos menos os nossos mistérios,
deixamos menos trabalho para o acaso.

Desconfiamos até dum fio d’água,
mas é como viver,
sempre,
uma doce guerra.

Oh, meu amor,
meu doce, terno,
maravilhoso amor!...
Da clara aurora até o fim do dia
eu continuo a amar-te,
tu sabes,
amo-te.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Esperarei por ti


ESPERA

Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

Eugénio de Andrade

terça-feira, 10 de julho de 2007

...também as tuas mãos haviam de chegar um dia assim...


"Pelas mãos e pelos olhos eu juro"

Alice Vieira

são as mãos que me trazem o amor dos homens
e me largam na fronteira de todos os segredos
que repousaram em mim como no breve espaço
de uma lua fugaz

também as tuas mãos haviam de chegar um dia assim
ou pelo menos foi isso que eu pensei quando
o teu corpo tocou ao de leve a sombra das águas
que tinham corrido ao longo das noites da tua ausência

mas às vezes o destino escreve-se
com inesperados visitantes
e o nosso quarto ficou cheio de vozes mas
nenhuma nos reconhecia por dentro das suas
mais absurdas dissonâncias
e foi então que eu soube que a felicidade
era apenas um complemento
muito circunstancial e remoto de lugar onde
em que nenhum passado que nos pertencesse
faria qualquer sentido

apesar de tudo os meus dedos
ainda procuram reter o sôfrego sabor das horas que faltam
para o prometido regresso
das palavras tecidas de fresco entre a penumbra
das nossas pernas

mas houve sempre desígnios imutáveis
eclipes ravinas ou a ácida saliva das marés
ou simplesmente a ferida de quem vinha
em voz baixa reclamar o que lhe fora roubado

e os meus dedos acabavam por recuar
e as palavras com que em tempos
tinhas esperado por mim
cansaram-se

e são hoje nódoas rosadas no meu corpo
como se o meu corpo fosse um mapa
onde o teu corpo deslocou minúsculas bandeiras
em tempo de guerra

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Em qualquer lugar me bastam os teus olhos


Deixa-me sentar numa nuvem
a mais alta
e dar pontapés na Lua que era como eu devia ter vivido
a vida toda
dar pontapés
até sentir um tal cansaço nas pernas
que elas pudessem voar
mas não é possível
que tenho tonturas e quando
olho para baixo
vejo sempre planícies muito brancas
intermináveis
povoadas por uma enorme quantidade de sombras
dá-me um cão ou uma bola
ou qualquer coisa que eu possa olhar
dá-me os teus braços exaustivamente longos
dá-me o sono que me pediste uma vez
e que transformaste apenas para
teu prazer
nos nossos encontros
e nos nossos dias perdidos e achados logo em
seguida
depois de terem passado
por uma ponte feita por nós dois
em qualquer sítio me serve
encontrar o teu cabelo
em qualquer lugar me bastam
os teus olhos
porque
sentado numa nuvem
na lua
ou em qualquer precipício
eu sei
que as minhas pernas
feitas pássaros
voam para ti
e as tonturas que a planície me dá
são feitas por nós
de propósito
para irritar aqueles que não sabem
subir e descer as montanhas geladas
são feitas por nós
para nunca nos esquecermos
da beleza dum corpo
cintilando fulgurantemente
para nunca nos esquecermos
do abraço que nos foi dado
por um braço desconhecido
nós sabemos
tu e eu
que depois de tudo
apenas existem os nossos corpos
rutilantes
até se perderem no
limite do olhar
dá-me um cigarro
mesmo que seja só um
já me basta
desde que seja dado por ti
mas não me leves
não me tires
as tonturas que eu teria
que eu terei
sempre que penso cá de cima
duma altura vertiginosa
onde a própria águia
nada mais é que um minúsculo
objecto perdido
onde a nuvem
mais alta de todas
se agasalha como um cão de caça
leva-me a recordação
apenas a recordação
da vida martelada
que em mim tem ficado
como herança dada há mil e
duzentos anos
deixa que eu fique
muito afastado
silencioso
e único no altodaquela nuvem
que escolhi
ainda antes de existir


Mário Henrique Leiria

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Aproxima-te

José Luís Peixoto

- Como é que te chamas?
Começo por pensar que todas as pessoas são iguais. Talvez por comodidade, talvez por segurança, começo por supor que todas as pessoas, na sua infinita variedade de passados, presentes e futuros, são iguais. É partindo desse pressuposto que digo «nós». Não o «nós» de apenas eu e tu, não o «nós» de país ou língua, mas o «nós» meu, teu e deles, de países e línguas, de todos aqueles que não nos estão a ouvir. E digo: nós temos um mundo no nosso interior. Digo: é fascinante a história de tudo aquilo que fomos, que passou e que nunca foi esquecido porque nunca foi identificado. Sem que nunca tenha sido arquivado de uma forma consistente, catalogado ou sequer registado, acabamos por chamar «caos» ou «alma» a esse mundo. Na fila do supermercado ou numa esplanada, Junho, acabamos por chamar-lhe «pensamento». E mesmo durante o instante em que dizemos essa palavra, «pen-sa-men-to», somos assaltados por uma sucessão de frases, sobrepostas às vezes, ou por imagens, ou por melodias, ou por palavras soltas, ou por tudo isto, sobreposto, misturado, em luta ou em harmonia.
- Onde é que nos encontrámos antes?
Tiramos fotografias para vermos quando formos mais velhos, para não esquecermos. Nesse mundo que existe por trás dos olhos, é impossível tirar fotografias. É impossível filmá-lo. As palavras são insuficientes porque variam consoante a voz que as canta. As palavras escritas, a verem-nos desde o papel, são muito diferentes daquelas que, dentro de nós, se desfazem. Às vezes, são como pássaros mortos na palma da mão. Outras vezes, são como a sua sombra. E, no entanto, escrever é falar para esse interior. Coloca uma ponte entre palavras e palavras, irmãos que se encontram. As palavras escritas no papel atravessam a pele e são despejadas directamente, com um ritmo, nesse mundo sem fronteiras que cada um de nós transporta. São como soldados a saltarem da parte de trás de um camião. Seriam necessárias muitas reticências se conseguíssemos escutar cada pormenor desse interior. É neste ponto que se coloca o problema da atenção. Temos olhos e, quanto à atenção, acontece o mesmo de quando olhamos para a distância e, a partir de certa altura, os contornos fogem dos objectos. Nesse nosso mundo/caos/alma, suponho que exista também uma distância: imagens que passam lá muito longe, por trás destas que passam logo aqui, palavras que passam onde apenas conseguimos ver vultos.
- Gosto da cor dos teus olhos.
Mergulhar no pensamento pode ser como mergulhar em contos infantis, podemos ser uma espécie de Alice deslumbrada. Podemos também encontrar masmorras e prisões perpétuas. Depende daquilo que procurarmos. Mais incrível do que não termos sempre esta consciência de nós próprios é o tão pouco que temos esta mesma consciência em relação aos outros. Está uma mulher sentada à nossa frente no autocarro, está o nosso pai, estás tu, e não somos sempre capazes de imaginar que, depois do rosto, ou sobre o rosto, invisível, está um choque frontal de palavras, está uma intermitência de frases, está uma imagem fixa, melodia, timbre de voz, etc. Apesar de já ter sido usado neste texto, «pensamento» parece-me um termo desadequado porque implica atenção. Estas palavras e imagens e melodias organizam-se em enxame. Mesmo quando oferecemos a atenção ao mundo, elas continuam lá, dentro de nós como se estivessem à nossa volta.
- Posso tocar-te os lábios?
Cada palavra escrita alimenta-se dessas muitas palavras que a formam, cada palavra escrita é uma condensação. Cada palavra dita é feita da organização dessas palavras, mesmo que. Mesmo que, por vezes, se interrompam.
- Posso soprar-te os lábios?
É agora que pergunto: o que é a memória? Um sentido poderia defender que as palavras e as coisas que nos constituem seriam viajantes, seguiriam movimentos – um pouco como os cometas, os astros. Desse modo, talvez fosse possível estabelecer um cálculo que pudesse prever cada ideia, palavra, imagem, etc. Seria assim, fácil, não fosse a circunstância de esse mesmo mundo existir com outro, depender dele – aquele que tem árvores, cidades e lugares concretos, aquele que está à nossa volta. Esse mundo que chamamos quando dizemos «mundo» e que, no entanto, é o encontro de todas as nossas solidões. Porque, mesmo que não procuremos palavras, acabamos por desconfiar que a incomunicabilidade absoluta existe, até entre nós e nós próprios. Ainda assim, somos capazes de encontrar muitas justificações para continuar os mesmos equívocos, para sermos incertezas vestidas de fatos, gravatas, ou tailleurs, escolhidos segundo critérios que aprendemos. Construir sistemas foi a parte mais fácil da nossa tarefa. Encontrar nome para os seus significados será outra das partes. Até lá, essas definições permanecerão enterradas por baixo daquilo que apenas podemos suspeitar quando nos detemos perante um horizonte ou perante uma cena de devastação. Olhar dessa maneira é um sentido que pertence às crianças, como a reflexão verdadeira é um sentido que pertence aos anciãos. Por isso, somos crianças paradas no extremo de um miradouro, de um cabo sobre o oceano. Tentamos imaginar o universo. Tentamos imaginar o infinito sem conseguirmos perceber que, no infinito do universo, existe um número infinito de mundos, todos eles infinitos em si, comportando mundos infinitamente. Depois, nos intervalos dessa incapacidade, encontramo-nos e somos funcionais. Cumprimentamo-nos à chegada e despedimo-nos à partida. A civilidade existe para nos guiar mas, ao mesmo tempo, acaba por nos desviar de nós próprios, acaba por dificultar que nos aproximemos de dizer aquilo que é evidente apenas para cada um de nós. Não é difícil concluir que são muito mais as palavras que não podemos dizer do que aquelas que conhecemos. Há fronteiras que ainda não sabemos ultrapassar, que estão connosco, que são nós.
- Posso beijar-te?