sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

o peso precioso da tua cabeça sobre o meu colo


Foto: Ed Hill



As coisas que imaginamos

José Luís Peixoto

quando nos deitamos no sofá, o peso precioso da tua cabeça

sobre o meu colo, não há limite para as coisas que imaginamos.

imaginamos que atravessamos uma ponte sobre o rio.
imaginamos que somos a chuva a cair sobre o jardim.


imaginamos o tempo onde está o nosso filho.

imaginamos o lugar onde adormece.
deitados no sofá, sabemos que anoiteceu lá fora,
e
sabemos que a pele do nosso filho nasce sob a tua pele.


imaginamos cada pormenor do seu rosto.

imaginamos os seus olhos grandes.
imaginamos que somos três a imaginar.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Hora de comemorar 2008 com Nuno Júdice!

Foto: Gundolf
POÉTICA

Nuno Júdice

Quero que o meu poema fale de barcos e de azul, fale
do mar e do corpo que o procura, fale de pássaros e
do céu em que habitam. Quero um poema puro, limpo
do lixo das coisas banais, das contaminações de quem
só olha para o chão; um poema onde o sublime nos
toque, e o poético seja a palavra plena. É este poema
que escrevo na página branca como a parede que
acabou de ser caiada, com as suas imperfeições
apagadas pela luz do dia, e um reflexo de sol
a gritar pela vida. E quero que este poema desça
às caves onde a miséria se acumula, aos bancos onde
dormem os que não têm tecto nem esperança,
às mesas sujas dos restos da madrugada, às
esquinas onde a mulher da noite espera o último
cliente, ao desespero dos que não sabem para onde
fugir quando a morte lhes bate à porta. E canto
a beleza que sobrevive às frases comuns, às
palavras sujas pelo quotidiano dos medíocres,
aos versos deslavados de quem nunca ouviu
o grito do anjo. E digo isto para que fique, no
poema, como a pedra esculpida por um fogo divino.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Recado

ouve-me

que o dia te seja limpo
e a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite


Al Berto

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

...creio na ocupação do mundo pelas rosas...


Creio nos anjos que andam pelo mundo,
creio na deusa com olhos de diamantes,

creio em amores lunares com piano ao fundo,

creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes;


creio num engenho que falta mais fecundo

de harmonizar as partes dissonantes,

creio que tudo é eterno num segundo,
creio num céu futuro que houve dantes,


creio nos deuses de um astral mais puro,

na flor humilde que se encosta ao muro,

creio na carne que enfeitiça o além,


creio no incrível, nas coisas assombrosas,

na ocupação do mundo pelas rosas,
creio que o amor tem asas de ouro. Amén.

Natália Correia

terça-feira, 16 de outubro de 2007

E alegre se fez triste


Adriano Correia de Oliveira, 25 anos de ausência
(09/04/1942 - 16/10/1982)


Aquela clara madrugada que

Viu lágrimas correrem no teu rosto

E alegre se fez triste

como se chovesse de repente em pleno Agosto


Ela só viu meus dedos nos teus dedos

Meu nome no teu nome e demorados

Viu nossos olhos juntos nos segredos

Que em silêncio dissemos separados


A clara madrugada em que parti

Só ela viu teu rosto olhando a estrada

Por onde o automóvel se afastava

E viu que a pátria estava toda em ti


E ouviu dizer adeus essa palavra

Que fez tão triste a clara madrugada

Que fez tão triste a clara madrugada


(Manuel Alegre - Adriano Correia de Oliveira)


segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Sorria dentro de mim... uma descoberta muito casta


Fonte

Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte
em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio

se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra

o urdir do tempo ---
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia

ocultamente.


Ninguém falava dela, porque

era imensa. Mas todos a sabiam

como a teta. Como o odre.

Algo sorria dentro de nós.


Minhas irmãs faziam-se mulheres

suavemente. Meu pai lia.

Sorria dentro de mim uma aceitação

do trevo, uma descoberta muito casta.

Era a fonte.


Eu amava-a dolorosa e tranquilamente.

A lua formava-se

com uma ponta subtil de ferocidade,

e a maçã tomava um princípio

de esplendor.


Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento

perdeu-se e renasceu.

Hoje sei permanentemente que ela

é a fonte.


Herberto Helder

domingo, 14 de outubro de 2007

Folhas de Eugénio


APENAS UM RUMOR


E no teu rosto aberto sobre o mar
cada palavra era apenas o rumor
de um bando de gaivotas a passar.

COM AS GAIVOTAS


Contente de me dar como as gaivotas
bebo o outono e a tarde arrefecida.
Perfeito o céu, perfeito o mar, e esse amor
por mais que digam é perfeito como a vida.

Tenho tristezas como toda a gente.
E como toda a gente quero alegria.
Mas hoje sou de um céu que tem gaivotas,
leve o diabo essa morte dia a dia.

RETRATO

No teu rosto começa a madrugada.
Luz abrindo,
de rosa em rosa,
transparente e molhada.

Melodia
distante mas segura;
irrompendo da terra,
quente, redonda, madura.

Mar imenso,
praia deserta, horizontal e calma.
Sabor agreste.
Rosto da minha alma.

Eugénio de Andrade